- Seus documentos por favor.
“Já me lixei” pensei comigo (foi outra a expressão que me passou pela cabeça mas não vejo necessidade de inaugurar outro tipo de vocabulário por aqui). A Ana, uma argentina a viver no Rio há dois anos, tinha insistido para que não me ficasse pela zona mais turística e oferece-me uma boleia até ao Centro. Disse que não me preocupasse por não ter capacete pois "dava caronas" desde que ali vivia e isso nunca tinha sido problema antes. Quando viajo tenho por hábito pôr-me nas mãos, no bom senso e nas vivências daqueles que lá vivem – seja há 2 anos ou há uma vida inteira. A conversa tinha começado pelos motivos do costume. Não há um raio de sol, eu ando de shorts e alças mas percebo que os cariocas aproveitam o seu Inverno (aos meus olhos meramente teórico) para usar os casacos e as camisolas que têm lá por casa. A Ana teve um ataque súbito de felicidade quando viu, dentro da minha mochila, a Time Out que tinha levado para matar os tempos mortos que nunca chegaram a nascer. É fotógrafa freelancer e foi a convite de bater umas fotos para a Time Out Rio que deixou Buenos Aires. Desde aí que não se imagina a viver longe do Flamengo. A única coisa que lhe tenho a apontar é o seu mau juízo relativamente ao código da estrada. O PM mostra-nos as alíneas que desrespeitámos e confirma:
- Apreensão de licença e motorizada (e uma multa de três dígitos que mesmo falando em reais já assusta).
E depois, de 3 em 3 minutos aparece um policial diferente que pergunta o que se passa e remata com ar insolente:
- Apreensão!
Acho que percebi o filme antes da Ana. Ela estava ocupada demais a ver a sua vida andar para trás. Enquanto aqueles monos tentavam compreender se ela trabalhava para a embaixada brasileira na Argentina ou para a embaixada argentina no Brasil eu ainda ruminava se deveria avançar para o "polícia bom" ou se não passo afinal dum preconceituoso etnocêntrico que só consegue conceber civilização no continente europeu e começa a ver Cidades de Deus e Tropas de Elite onde eles não existem. Mas não, o filme era mesmo aquele. E é um filme triste ver dois polícias de metralhadora em punho representarem uma peça de teatro de valor artístico equiparável àquelas em que participei nos meus tempos de catequese. É triste e contrasta radicalmente com aquele lindo pano de fundo da Lagoa. Lembrei-me dos dois polícias búlgaros que, há 5 anos atrás, enquanto atravessava o seu país de comboio, me pediram um ou dois euros enquanto retinham o meu passaporte na sua mão. Esses não tinham metralhadoras. Mas o porte gigantesco e a entoação chantagista eram bem mais assustadores que o tom falsete do matulão a quem hoje calhava o papel de "polícia mau". Dou o toque à Ana e deixo-os a negociar mas pelo que o vento me traz da conversa os 28 reais que traz com ela não são o suficiente. Quando ficamos sozinhos de novo lembro-lhe, num tom calmo, que tenho 50 reais em cada bolso e que – deixemo-nos de tangas e falsos moralismos – a verdade é que cometemos uma infracção e que, por mais que nos entretenhamos a cascar naqueles gajos, a possibilidade que eles nos estão a dar é uma óptima oportunidade de sairmos dali respectivamente, com uma boa história para contar e um post original para publicar. Ela sorri, concorda e aceita 30 reais.
Já passou…encontramo-nos mais à frente. A Ana ainda está a recuperar do susto de se ver impossibilitada de "dirigir" durante não sei quanto tempo. Não resisto, olho para aquela figura simpática e despeço-me com um abraço e um beijo na testa. Ela insiste que está em dívida e que me leva a almoçar ou jantar. Logo se vê…esta despedida parece-me muito bem assim. Vou passear para a Lagoa e dou comigo a tentar cantarolar um excerto duma música do Gabriel o Pensador que sabia de cor há 14 anos atrás…
“Já me lixei” pensei comigo (foi outra a expressão que me passou pela cabeça mas não vejo necessidade de inaugurar outro tipo de vocabulário por aqui). A Ana, uma argentina a viver no Rio há dois anos, tinha insistido para que não me ficasse pela zona mais turística e oferece-me uma boleia até ao Centro. Disse que não me preocupasse por não ter capacete pois "dava caronas" desde que ali vivia e isso nunca tinha sido problema antes. Quando viajo tenho por hábito pôr-me nas mãos, no bom senso e nas vivências daqueles que lá vivem – seja há 2 anos ou há uma vida inteira. A conversa tinha começado pelos motivos do costume. Não há um raio de sol, eu ando de shorts e alças mas percebo que os cariocas aproveitam o seu Inverno (aos meus olhos meramente teórico) para usar os casacos e as camisolas que têm lá por casa. A Ana teve um ataque súbito de felicidade quando viu, dentro da minha mochila, a Time Out que tinha levado para matar os tempos mortos que nunca chegaram a nascer. É fotógrafa freelancer e foi a convite de bater umas fotos para a Time Out Rio que deixou Buenos Aires. Desde aí que não se imagina a viver longe do Flamengo. A única coisa que lhe tenho a apontar é o seu mau juízo relativamente ao código da estrada. O PM mostra-nos as alíneas que desrespeitámos e confirma:
- Apreensão de licença e motorizada (e uma multa de três dígitos que mesmo falando em reais já assusta).
E depois, de 3 em 3 minutos aparece um policial diferente que pergunta o que se passa e remata com ar insolente:
- Apreensão!
Acho que percebi o filme antes da Ana. Ela estava ocupada demais a ver a sua vida andar para trás. Enquanto aqueles monos tentavam compreender se ela trabalhava para a embaixada brasileira na Argentina ou para a embaixada argentina no Brasil eu ainda ruminava se deveria avançar para o "polícia bom" ou se não passo afinal dum preconceituoso etnocêntrico que só consegue conceber civilização no continente europeu e começa a ver Cidades de Deus e Tropas de Elite onde eles não existem. Mas não, o filme era mesmo aquele. E é um filme triste ver dois polícias de metralhadora em punho representarem uma peça de teatro de valor artístico equiparável àquelas em que participei nos meus tempos de catequese. É triste e contrasta radicalmente com aquele lindo pano de fundo da Lagoa. Lembrei-me dos dois polícias búlgaros que, há 5 anos atrás, enquanto atravessava o seu país de comboio, me pediram um ou dois euros enquanto retinham o meu passaporte na sua mão. Esses não tinham metralhadoras. Mas o porte gigantesco e a entoação chantagista eram bem mais assustadores que o tom falsete do matulão a quem hoje calhava o papel de "polícia mau". Dou o toque à Ana e deixo-os a negociar mas pelo que o vento me traz da conversa os 28 reais que traz com ela não são o suficiente. Quando ficamos sozinhos de novo lembro-lhe, num tom calmo, que tenho 50 reais em cada bolso e que – deixemo-nos de tangas e falsos moralismos – a verdade é que cometemos uma infracção e que, por mais que nos entretenhamos a cascar naqueles gajos, a possibilidade que eles nos estão a dar é uma óptima oportunidade de sairmos dali respectivamente, com uma boa história para contar e um post original para publicar. Ela sorri, concorda e aceita 30 reais.
Já passou…encontramo-nos mais à frente. A Ana ainda está a recuperar do susto de se ver impossibilitada de "dirigir" durante não sei quanto tempo. Não resisto, olho para aquela figura simpática e despeço-me com um abraço e um beijo na testa. Ela insiste que está em dívida e que me leva a almoçar ou jantar. Logo se vê…esta despedida parece-me muito bem assim. Vou passear para a Lagoa e dou comigo a tentar cantarolar um excerto duma música do Gabriel o Pensador que sabia de cor há 14 anos atrás…
10 comentários:
Que história!
Suponho que a Ana seja a miúda prática da foto... :o)
Costumo dizer que todas as miúdas giras se chamam Ana... Ou será que todas as Anas são miúdas giras?
Ou ambas... :op
O suborno acabou por compensar. hehe Pê Émi côrrumpidôooo.
Mas belo texto :o)
Gosto do casaco da Ana.
thanks!
*
been there done that, no meu caso foi um bocadinho mais, mas a história também era um bocadinho mais grave...
saudades do rio.
A cidade mais bonita do mundo, habitada pela melhor e pela pior gente do mundo. Isabel I
Problemas de Países com um fosso muito grande entre ricos e pobres. Problema grave do meu País também, Angola, a corrupção. E corromper para facilitar a vida também não ajuda no combate. Mas acredito que isto seria uma discussão filosófica demais para esta janelinha de comentários :-)
Belo texto e saudades do rio também.
Em Setembro...em tempos de rentrees eras sempre tu quem tinha as melhores historias para contar.Nao me surpreende que as coisas nao tenham mudado.Fico apenas a pensar naquelas que aqui nao contas!
abraço
em bom brasileiro: vacilou, dançou!
mas n te preocupes, agora vai correr tudo bem!
e toma cuidado com essa máquina!
bêjo!
A escola portuguesa da polícia, em Moçambique passa-se exactamente a mesma situação, mesmo quando todos os documentos estão em ordem, é necessário dar qualquer coisa para o "refresco". A única diferença é que lá não tinha nenhuma fotógrafa argentina a acompanhar-me.
Aquele abraço,
M.
Bor muito atrasado que o nosso país esteja, parecer-nos-ia escandaloso um GNR pedir-nos uma ajudinha para não nos passar uma multa... Ainda bem que é assim! Abraço André B
Já deu para perceber que o Alfaiate tem espírito aventureiro!
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