terça-feira, 27 de março de 2018

Não conheço o Manuel Reis




Vou usar o presente do indicativo. Não conheço o Manuel Reis. Falei com ele três ou quatro vezes. Sei bem quem é mas desconfio que mal saiba quem sou. À luz dos mais idiotas padrões sociais, o Manuel Reis é uma pessoa que fica bem dizer que se conhece. Presumo que por isso mesmo, quando com ele me cruzo, nunca o maço com cumprimentos supérfluos.

Começo pelo que menos importa que, importando pouco, foi o que mais importou para me achar no direito de falar sobre alguém que não conheço. Acho que o Manuel Reis tem estilo. Acho que o Manuel Reis tem pinta. Também acho qualquer uma destas frases um tanto ou quanto estúpida mas acho, de forma objectiva, que o Manuel Reis tem uma identidade visual interessante. E foi seguramente por isso que, algures em 2009 quando o vi na rua, lhe sugeri um retrato. A recordação que tenho desse momento é de uma afabilidade extrema. A maior parte de nós não sabe dizer não. Não sabe rejeitar uma oferta, um convite ou um argumento de forma elegante. Não estou a brincar: é uma dificuldade transversal a muita gente. Claramente, o Manuel Reis não padece desse problema. Porque aquilo que o Manuel Reis fez foi dizer-me, de uma forma igualmente clara, que não estava interessado em ser fotografado (de resto, a sua indisponibilidade em aparecer quando aparecer parece ser o oxigénio de meio mundo, não me é de todo indiferente). Mas não se limitou a rejeitar-me não me fazendo sentir rejeitado. Fê-lo lisonjeando-me. Não recordo as palavras exactas. Mas sei que foram mais que as suficientes para ter percebido que o trato daquele homem é uma espécie de aberração estatística. Por isso, quando ontem li algumas crónicas escritas por pessoas que aparentemente o conhecerão bem, não achei que  tivessem sobrevalorizado o seu cavalheirismo. Alguma coisa este homem tem de singular. Ao ponto de, pelas primeiras vezes, me ter sentido inspirado por um homem que pensei ser homossexual (não conheço o Manuel Reis mas já ouvir falar dele o suficiente; assumo que é gay). Poderá parecer um detalhe irrelevante ou elementar homofobia. Não creio que seja nenhum deles. Admirar um homem gay não é um processo óbvio para quem, entre as coisas pelas quais mais se habitou a admirar num homem, está o gosto pelas mulheres. Quando o Manuel Reis me respondeu, devo ter pensado que poderia ter as mulheres que quisesse. A sobriedade, o tom de voz, os gestos, a expressão verbal. Houve ocasiões na vida em que olhei para um homem mais velho e pensei que gostaria de vir a ser como ele: acho que aquela foi uma delas.

Pelo que tenho lido o Manuel Reis é conhecido por um mar de coisas. Vou falar apenas sobre aquela que estou habilitado a comentar: o Lux. Ao contrário daquilo que foi um dia tradição neste blogue, não vou despender um momento que seja a elogiar o esteta ou o legado que o Lux herdou dessa sua condição. A primeira coisa em que penso quando lembro ambos é outra: que a urbanidade com que me negou a foto é, de alguma forma, a mesma que é promovida no contacto entre quem lá trabalha e quem lá dança. Há um episódio que é particularmente esclarecedor. Na verdade há uma porrada deles mas este é o mais fácil de entender. Disse-me um dia um segurança do Lux: “Na minha vida pessoal não repito as coisas quatro vezes. Aqui pagam-me para dizer as coisas quatro vezes à mesma pessoa”. Alguém que como eu, entrou tantas vezes em discotecas e sabe quanta merda pode acontecer numa pista de dança, entende bem as consequências destas palavras (e quem nunca gostou de sair mas tem acesso ao youtube também). Não sei por exemplo, se o Lux paga atempadamente aos seus fornecedores. Que é algo que também diz muito sobre valores e ética de quem gere um negócio. Não faço puto ideia. Mas permito-me uma expectativa sobre o tema. Porque senti sempre que a realidade do Lux se distanciava de um conjunto relativamente homogéneo de atitudes e comportamentos (entenda-se, práticas merdosas que convergem no desrespeito pelos clientes) fáceis de localizar nas noites de Lisboa e de tantas outras cidades do chamado mundo ocidental. Mais por isso que por tudo o resto que se costuma valorizar numa discoteca, disse algumas vezes que o Lux é a melhor discoteca do mundo. E talvez seja importante lembrar algo tão elementar e tantas vezes esquecido: as discotecas podem ser coisas importantes na vida das pessoas. O Lux foi importante na minha. E com toda a honestidade, e sem pretensão de assinar mais que um simples elogio a um desconhecido, desconfio que as particularidades daquele espaço têm um nome: o nome do tal homem que não conheço.

As pessoas são, mais que tudo, aquilo que são entre os seus íntimos. Mas as pessoas não são apenas aquilo que são nos seus círculos de proximidade. As pessoas são também aquilo que são nos contactos efémeros, nos gestos rotineiros e nas pequenas impressões que deixam àqueles com quem se cruzaram um dia. E por tudo isso, pelo que ouvi dele e dizer sobre ele (e pelas correlações que me permito estabelecer entre umas e outras coisas), tenho dúvidas que o Manuel Reis não mereça mais que este texto


terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

Tornozelos, meias e alguma idiotice


As cores do Fabrizzio (2) As cores do Fabrizzio


Estas fotos não são novas. Publiquei-as aqui a 14 de Junho de 2011, tendo sido tiradas dias antes em Madrid, mais precisamente a 10 de Junho. A primeira conclusão – pouco abonatória para a minha pessoa – é que, em pleno dia de Camões, de Portugal e das Comunidades Portuguesas, andava a passear pela capital do reino que mais atentou contra a soberania nacional. A segunda – aparentemente insignificante mas de uma pertinência cirúrgica a estes dias  tem que ver com a relação entre o visual primaveril/estival do Fabrizio e o tempo que fazia em Madrid. Segundo este relatório meteorológico, às 11:59h, hora a que tirei estas fotos, estariam 21˚C. Sendo que a temperatura máxima em Madrid, no dia 10 de Junho de 2011, atingiria os 25˚C.

A ordem das fotos na publicação original é precisamente a contrária à de hoje. Porque visualmente falando, o detalhe não se sobrepõe ao todo. E porque humanamente falando, por mais impressionantes que fossem os sapatos, ter-me-á importado mais a identidade de quem os escolheu, que a escolha em si mesmo. Hoje as circunstâncias são outras. Esta semana será talvez a mais fria que Portugal já viu este Inverno. Os planos de contingência de Lisboa e Porto foram activados na noite de ontem, há já alguns dias que neva em Madrid e acredito que, a estas horas, o Fabrizio tenha braços e pés devidamente resguardados.

Esta madrugada estava na Gare do Oriente à espera do comboio que me haveria de levar ao Porto. À minha frente tinha uma série de pessoas agasalhadas de todas as formas possíveis e imaginárias. Gorros, luvas, estolas, cachecóis. Camisolas de gola alta, calças de bombazina, casacos forrados a pele de carneiro. Algumas das que levavam estes agasalhos estavam, surpreendentemente, de tornozelos despidos. Em alguns casos com meias curtas (cuja extremidade era possível vislumbrar, entre o calçado e a pele), noutros a sensação era de que não haveria meias de todo (mas dou o benefício da dúvida: as peúgas seriam curtas o suficiente para não serem vistas por baixo do calçado).

Cada um de nós tem uma percepção muito própria do que é quente ou frio e do calor ou fresco que sente. Cada um tem os seus termómetros e termóstatos (há até quem permaneça indiferente sob temperaturas extremas) e qualquer um de nós já deu por si a pensar que se vestiu de mais ou de menos para a ocasião, seja ela social ou meteorológica. Mas não é nada disso que está em causa. O que está em causa é uma tendência visual de indumentária que, para muita gente, se sobrepõe à razão de ser da própria indumentária. Aventurei-me a fazer algumas perguntas sobre a nudez dos tornozelos no pico do Inverno... As respostas alternavam entre a corrente negacionista (“não, não tenho frio algum”) e o esclavagismo esteta (“já não me consigo ver de outra forma”). Em comum? Uma ligeira sensação de desconforto quando questionados. Gerada, creio eu, pelo reconhecimento interior do quão ridículo é dar vida a esta expressão visual com temperaturas perto de zero.

Se há flagelos no mundo mais graves que parte da humanidade fingir não sentir frio no mesmo sítio que tantas vezes se ocupou de proteger? Seguramente. Desde que não sejam responsáveis por congestionar as urgências ou pelo colapso do Serviço Nacional de Saúde, os tornozelos de uns não interferem com a vida de outros. E não são estas pessoas livres de fazer o que mais querem? Claro que são. Mas quando milhões de pessoas um pouco por todo o mundo, por motivos de natureza estritamente visual, “deixam de ter frio” na mesma zona do corpo que se esforçaram por abrigar uma vida inteira, algo está mal. Não deixa de ser curioso que, em tempos de liberdade e autodeterminação sem precedentes, sejamos todos tão carneiros e... perdoem-me os que me são queridos e aqueles que nunca vi antes... tão profundamente idiotas


p.s. – Pese embora a irrelevância destes factos partilho-os aqui. Há 20 anos não havia meias curtas. Lembro-me de dobrar as meias de tamanho convencional para – quando estava de calções – não ter o cano da peúga descoberto para além dos ténis que, desprovido de função, ficava abandonado ao estatuto de ruído visual (anulado pela dita dobra). Não disse? Digo agora. Boa parte das minhas meias são curtas. Mas repito: essa não é a questão (acho que insulto mais o leitor ao sentir a necessidade de me explicar que correndo o risco de lhe chamar idiota). Também tenho uma porrada de gorros em casa e não é por isso que os levo para a praia no pico do Verão

(artigo actualizado às 11:47 do dia 7 de Fevereiro)