quarta-feira, 12 de junho de 2013

Vega

Vega & Sevilla


Luís. Acho que se chamava Luís. Fez-me sinal na direcção delas e interrogou-me “sabes quem são?”. “Devia?” perguntei. Na verdade afirmei perante mim “que sim que devia” mesmo que, senão por outro qualquer motivo, pelo resultado imaginético que se adivinhava. A tarefa ficou simplificada uma vez que, casualidade ou não, convidaram a Vega a sentar-se ao meu lado naquele pátio sevilhano onde tomava o pequeno almoço. Só horas depois, quando a voltei a encontrar a meio da tarde, fiz este retrato. Mas foi de manhã. Foi de manhã que vi a Vega e uma amiga sua. Uma loira e outra morena como se, aquela imagem que havia captado a minha atenção, do Luís e a de quem quer que ali estivesse, fizesse parte de um qualquer trecho visual dedicado à mais intemporal das feminilidades. E perdi essa foto, em parte porque também eu queria contemplá-las e desfrutar do momento de forma discreta sem abordagens, fotografias ou apresentações. E, por outro lado, porque não me parecia bem deixar o tal Luís ali pendurado. O mesmo Luís que me havia perguntado “sabes quem são?”. A quem respondi interrogando “devia?” quando na verdade, feitas as contas, afirmava perante mim mesmo “que sim que devia”. Porquê? Porque quando olhei para a Vega vi uma virgem. Daquelas virgens por quem terroristas suicidas suspiram antes de se fazerem rebentar sobre um qualquer local onde, momentos depois, restará apenas sofrimento e dor. Como se, olhando para ela, encontrasse uma tal humanidade nesses homens a quem, pela violência dos seus actos, me custa sempre reconhecer tal atributo. E lembrei-me de tudo isto enquanto percorria o casco antigo de Sevilha. Enquanto percorria aquelas ruelas estreitas e pensava no quanto gostaria de fazer ali uma foto. Que a particularidade deste conceito de retratar, quem por casualidade passa do outro lado da rua, me impede de ter assegurado uma fotografia onde quer que me apeteça fazê-la. E, ao percorrer o Bairro de Santa Cruz, sinto as pedras das quais a sola do meu calçado não me protege. E chego a uma praça linda. Não se chama Velazquez nem Goya. Nem Alfonso XI, nem XII nem XIII. Nem Camilo José Cela nem Miguel de Cervantes Saavedra. Chama-se Elvira. Doña Elvira. Onde voltei um dia depois. Porque até há duas linhas era o dia x. O dia em que recordei a Vega, o seu encanto e o de Sevilha. Em que caminhei até ao ponto em que parecia sentir já os pedregulhos da calçada em contacto directo com os meus pés. Porque hoje que vos escrevo é dia x+1. E estou de novo em Doña Elvira. Na verdade estou duplamente com ela já que, para além de me encontrar naquela praça, me sento à mesa do restaurante que se apropriou também do seu nome. Sento-me, peço uma folha de papel e uma esferográfica. Vou já, neste preciso momento, nas costas da segunda folha que pedi entretanto. E recordo agora que por culpa da Vega olhei com humanidade para a imagem do terrorista suicida. Por causa da rapariga que entra (com a amiga, em tons mais escuros, igualmente bela) por aquele pátio sevilhano e faz com que o Luís me pergunte “sabes quem são?”. A quem contesto por intermédio de uma interrogação quando, na verdade, sabemo-lo agora tão bem, confirmo apenas perante mim mesmo “que sim que devia”. A Vega. Não resisto e digo “que nome bonito”. Que é, seguramente, uma das formas mais elementares e desprovidas de arte de se elogiar uma mulher. Mas é que Vega é lindo. Ela parece não desconfiar e eu, francamente, não tenho como lhe explicar. Não pode imaginar que, aquele pequeno-almoço num pátio sevilhano no dia x-1, me há-se servir de inspiração para, no dia x, enquanto caminho e sorrio por aquelas ruas e ruelas onde os pedras que emergem do solo me agridem os pés, pensar em algo que escrevo, neste momento, no dia x+1, sentado no restaurante situado na praça de mesmo nome que não pertence a um prémio Nobel, artista ou antigo monarca do nosso país vizinho. Pertence somente a Elvira. Doña Elvira. E nesse momento sinto-me rendido às mais simples e prosaicas sensações da vida. À brisa (quase que) fresca que se faz sentir nessa esplanada ou ao encanto que Vega deixará sobre mim, o terrorista suicida, o Luís, qualquer uma das pessoas que estava naquele pátio sevilhano ou qualquer outra que visite este blogue. E quando penso nisso esqueço-me até da planta dos meus pés sovada por aquela calçada antiga que o meu calçado de Verão não se ocupa de proteger. Vega soa-me o mais bonito dos nomes. Desmesuradamente belo. Ela parece não desconfiar e eu, francamente, não tenho como lhe explicar. Mas Vega é belo. Independentemente do que ela própria considerar sobre o nome que lhe pertence. E torna-se ainda mais belo naquele pátio fresco daquela cidade insuportavelmente quente com uma gente desmesuradamente simpática e orgulhosa. Porque o meu fascínio por aquela imagem matinal de uma loira e uma morena a irromper por entre o meu pequeno-almoço não eclipsa por um segundo a consciência sobre onde estou. Estou em Sevilha. E em Sevilha encontrei as gentes mais orgulhosas da sua terra. Porque em Sevilha ouvi – da boca do pai de um rapariga que ali conheci – o mais bonito dos ditos nativos. Dizia ele, sem qualquer trejeito ou laivo de ironia:
– Sabe o que me dá pena? A mim... A mim dá-me pena a gente que não nasceu em Sevilha.

Pois a mim dá-me pena quem não viu aquilo que eu vi quando o Luís me perguntou “sabes quem são?” e eu, na mais cínica das retóricas, lhe perguntei “devia?” quando já todos estamos fartos de saber que murmurava perante mim mesmo “que sim que devia, claro que devia”

[esta publicação pode também ser vista aqui (e desconfio, a partir do momento em que se conta, por aqui também)]

16 comentários:

GL disse...

Este é um dos mais belos dos seus post. É que conseguiu aliar a beleza da fotografia à beleza descritiva do texto.
Por isso, pelo prazer que me deu lê-lo, obrigada.

Anónimo disse...

zé, os avanços e recuos deste texto são sublimes. já fazia falta este texto. muito bom!! um grande abraço, dg

A Muito Pipi disse...

Maravilhoso (e maravilhosa)!

Anónimo disse...

Impecável!

Anónimo disse...

Amei o texto. Amei!

Anónimo disse...

ADOREI o texto!! E a Vega é qualquer coisa de divina!

sandyb disse...

this was such a thoughtful post and you are a very thoughtful writer. keep the cynicism up though...it is forever the best filter and teacher.
-sandy.

Anónimo disse...

i love it ( PP)

Anónimo disse...

Lambi o texto !

Rosa Blanca disse...

BELO LOOK!!AMEI!

undeuxtroisplume disse...

As flores no cabelo, adorei, essa liberdade, essa primavera, esse ar descontraido...

Anónimo disse...

Sublime, tanto o texto bem como a foto.

Anónimo disse...

Excelente texto. Li-o duma penada e isso é muito bom sinal, pelos ritmos, pela sua suavidade e fluidez. Tenho visto fotos muito boas por aqui e modelos muitos interessantes mas este merece na verdade uma palavra de felicitações!

Anónimo disse...

A escrita é sempre tão sublime quanto as imagens... Fico sempre contente quando vejo que a imagem é acompanhada de texto... Tem mesmo que se dedicar mais à escrita... Muitos parabéns

Pedaço de mim disse...

Descobri seu blog outro dia. Me encantei.Continuo encantada e não mais vou desencantar.Não sei do que gosto mais se das fotos ou dos textos.Ambos cheios de sensibilidade.Torço para sempre ter tempo de visitar o Alfaiate.
Parabéns ao escritor e fotógrafo.

Celina disse...

Qual poeticidade é a mais bela... o encanto verbal ou não verbal?
Seria injustiça abdicar de um, então prefiro acreditar que o todo se faz belo.
Excelente trabalho,tu tens um olhar mágico.