Cheguei
às 12h em ponto. Um toque em cadeia a caminho das Amoreiras havia deitado por
terra o plano de chegar dez minutos antes. E, por causa desse imprevisto, já
sentia sobre a pele o efeito conjunto do caminhar apressado, do traje formal,
dos 30˚C à sombra e do receio de chegar atrasado a uma entrevista de emprego.
Apresentei-me à senhora que estava na recepção. Ela agarrou no telefone,
anunciou a minha presença e pediu-me que aguardasse. Assim o fiz. Passados
alguns minutos volto a aproximar-me e pergunto pela casa de banho. A resposta
foi esta:
– Não temos casa de banho.
Encaixo
a resposta, volto a recuar, mas regresso novamente até junto do balcão:
– Permita-me o feedback, parece inacreditável que não tenham
casa de banho.
A
senhora cuidou de reformular:
– Temos casa de banho, mas é apenas para colaboradores.
Renovei
a minha estupefacção e resignei-me à condição daqueles a quem não é permitido
usar o WC. A senhora sublinhou que eram as instruções que tinha e eu pedi
apenas que fizesse chegar o meu desapontamento a quem quer que lhas tivesse
dado. Momentos depois acrescentou:
– Se
precisar mesmo pode ir ao café. Posso avisar o consultor...
Poderia
discorrer sobre o que significará “precisar mesmo de ir à casa de banho”, ou
sobre que responsabilidade social exibe uma empresa que convoca pessoas às suas
instalações e lhes indica o café mais próximo quando estas perguntam pelo WC.
Mas cinjamo-nos aos factos. Não ando por Lisboa a testar instalações
sanitárias. Recebi, de um consultor da Kelly Services, uma mensagem via
LinkedIn, um telefonema, um convite para uma entrevista e uma confirmação via
e-mail. Estamos a falar de uma multinacional que, segundo ela mesma, «é a
quarta maior empresa de Gestão de Recursos Humanos do mundo». Estamos a falar
de uma entidade respeitável, com sede nacional num imóvel imponente (o mesmo
onde foi solicitada a minha comparência), e cuja operação passará por convidar,
diariamente, dezenas e dezenas de pessoas a visitar a sua dúzia de agências em
Portugal. Estamos a falar de uma empresa cujo objecto do seu trabalho são as
pessoas e os seus atributos. E para ser o mais objectivo possível, estamos a
falar de uma empresa que, naquela data e local, não respeitou as necessidades
mais primárias de qualquer ser humano.
Não
creio que seja necessário elencar os imperativos pelos quais o nosso organismo
se rege ou enfatizar que nem sempre nos é permitido protelar uma ida à casa de
banho. Que fazemos chichi e cocó com mais frequência quando estamos nervosos ou
que, como tão bem se saberá numa empresa de recrutamento, muitos de nós ficam
mais tensos quando são avaliados. Parece-me desumano negar o acesso a um WC a
alguém que se convida para uma entrevista de emprego. E mesmo que, como quero
acreditar, este episódio seja mais culpa de alguém em quem se depositou mais
responsabilidades do que seria aconselhável (o que abona pouco a favor de quem
recruta em nome de terceiros) que de alguma cultura corporativa, é interessante
constatar o seguinte: a menos de 100 metros da sua sede, há um outdoor da Kelly com a inscrição
THE BEST TALENTS ARE LIKE STARS (os melhores talentos são como estrelas).
Pode até questionar-se a tradução mas há duas ideias que ganham forma: nem os
corpos celestes que a Kelly Services recruta precisam de ir à casa de banho,
nem o marketing parece responder por algumas das suas acções. E pensando bem:
que melhor pessoa para faltar ao respeito, que àquela cuja situação não permite
fazer reivindicações, sob pena de se poder prejudicar? Porque é disso que esta
crónica trata: da facilidade com que uma parte tira partido do poder sobre a outra
e como se permite desrespeitá-la.
Quando
o consultor apareceu, expliquei que não faria uma entrevista num local onde se
exibia tamanho desrespeito pela condição humana. Como não mencionou qualquer
mal entendido deduzi que, quando a senhora da recepção sugeriu que me dirigisse
ao café mais próximo, estaria genuinamente a tentar ajudar. Espero que esta
crónica seja um win win. Para
mim, porque a forma como o Homem trata o seu semelhante é sempre um tema
importante. Para a Kelly, porque o gigante mundial da gestão de recursos
humanos pode, com toda a certeza, cuidar bem melhor daqueles que justificam as
suas receitas.
[este texto foi publicado na crónica YOU TALKING TO ME' da edição de Outubro da GQ PORTUGAL]
[este texto foi publicado na crónica YOU TALKING TO ME' da edição de Outubro da GQ PORTUGAL]
6 comentários:
É inacreditável!!! Como é que é possível?!?! Isto faz-me sentir nojo das pessoas e vergonha alheia!! Que vergonhoda empresa e que vergonhosos colaboradores!!
Trabalhei numa loja da marca komono - óculos de sol - e não havia WC. Imagine que nem direito tinha aos 15 minutos de intervalo porque era a única funcionária da loja. Por extrema necessidade aguentei 3 meses. Hoje envergonho-me de ter compactuado com essa situação.
O que dizer? Que o desrespeito por outrém e em qualquer vertente é, facto, situação usual que se vai tornando normal. Estamos a regredir cada vez mais!
Excelente ��
Então e deixaram-te ir à casa de banho ou tiveste mesmo que ir ao café?
Que dizer? Da Kelly Services, apenas que nem me surpreende. Ao Alfaiate, apenas que misturar Kelly Services e "entidade respeitável" na mesma frase não faz muito sentido.
Por outro lado, uma vez que está na moda "pensar fora da caixa" porque não "mijar fora do penico"? Tipos destes merecem que alguém lhe faça um cocó bem no meio do escritório...
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